PAULUS   

Peça em dois atos, baseada em trechos da bíblia sagrada dos hebreus, expondo, com um olhar feminino, os bastidores da fundação da igreja Católica Apostólica Romana.



PRIMEIRO ATO

CENA 1


CenárioHá um clima de circo no ar. No centro do palco, o picadeiro é um praticável com 3 degraus. Fundo neutro. Quem sabe uma cortina anódina como pano de fundo? Luz, luzes, muita luz! Luzes piscando, luzes gritando, luzes feéricas.


Paulo e Tito estão em Jerusalém, à porta do templo, no meio da multidão (formada pelo pessoal do coro). Tito (carregando dois pesados sacos - malotões de banco - cheios de dinheiro) e Paulo, mais a frente, sobem os 3 degraus cenográficos das escadarias do templo, quando se deparam, em cima do praticável, com um cego pedindo esmolas. Percebendo na multidão em volta deles uma boa plateia, Paulo dirige-se pomposamente ao cego, que, olhando para o céu, mantinha estendido o seu braço direito e a mão aberta para esmolas..

(Nesse instante, como num circo, há um repique de tambores anunciando o clímax da apresentação do artista).


PAULO

(fala com sotaque caricatural de árabe ou judeu, como a voz de Paulo Maluf)

-Vire-se para mim, ó homem de Deus! Não tenho prata, nem ouro, mas o poder que está em mim eu uso em seu benefício: em nome do Senhor Jesus Cristo de Nazaré, abra os seus olhos e veja!

(Os tambores interrompem abruptamente o repique e Paulo tomando asperamente a bengala da mão do cego, parte-a ao meio. O cego sai andando e saltando e louvando a Deus. O coro solfeja “A Balalaica” que nos circos sempre saúda o fim bem sucedido das apresentações dos artistas. Reconhecendo o cego, que estava já há alguns dias na porta do templo a pedir esmolas, a multidão corre para perto de Paulo e Tito, enquanto o solfejo da balalaica transforma-se no mesmo instante uma exclamação coletiva (Ohh!) e para, abruptamente), logo que Paulo infla os pulmões para começar a falar.


PAULO
- Varões israelitas: por que vocês se admiram tanto com o que acabam de testemunhar? Por que vocês põem os olhos em nós, como se por nosso poder ou por nossa piedade tivéssemos feito esse homem cego enxergar? O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos pais glorificou o seu filho Jesus, a quem vocês entregaram, negaram e acusaram diante de Pilatos. Mas vocês negaram o santo e o justo e pediram que um homicida fosse libertado em seu lugar. Vocês mataram o criador da vida, a quem Deus ressuscitou dos mortos e nós somos testemunhas!


(O coro entoa “Aleluia, Aleluia” e para, quando Paulo retoma o seu discurso).

PAULO
– Mediante a fé no seu nome, é que o santo nome de Jesus deu àquele cego a firmeza e a luz. A fé que vem do santíssimo nome de Jesus foi quem deu a esse cego uma cura perfeita, à vista de todos vós!

(O coro volta a entoar o cântico “Aleluia” e vai se dispersando, ficando no palco, sobre a plataforma superior da escadaria, apenas Paulo, Tito (com as sacolas cheias de dinheiro das oferendas) e um camelô, que, dirigindo-se a Paulo, afirma com convicção):


CAMELÔ
– Mas que mentira! Que pouca vergonha! Esse farsante é o mesmo “cego” que você já “curou” em Colossas, cidade da Frigia, lá no vale do Lico, quando você pregava o nome desse nazareno, que você mesmo perseguia e matou. Eu sei! Eu vi!



PAULO
– Sim, é ele sim, que voltou a ficar “cego” e eu, em nome do mesmo Jesus, o curei novamente agora, seu idiota! (Paulo fala com impaciência e raiva).


CAMELÔ
- Mas isso é um embuste! Se esse nome de Jesus, que você prega em toda parte, tem mesmo todo o poder que você diz, você não precisa usar dessa farsa! Você está é enganando o povo!


PAULO
– Vá pro inferno, fofoqueiro infeliz! Vá, ande! Conte a todos a sua verdade, viajante miserável. Você é um verme desgraçado; você está fora das bênçãos de Deus e dos favores do Imperador! O que vale é o que eu digo e o que eu faço. A verdade é que a verdade me pertence. A verdade pertence a quem manda. A verdade é escrava de quem tem dinheiro (empunha um dos sacos) e manda. Essa é a verdade. Ninguém dará crédito às palavras de um vagabundo! E você, camelô infeliz, nunca mais se atreva a vir aqui vender suas bugigangas! Suma! Desapareça de minha frente, antes que recaia sobre a sua cabeça a ira bendita do Senhor Deus, que, por muito menos, fulminou Ananias e Safira! Não ouse me interpelar! Eu sou o apóstolo do senhor Jesus e você é nada e será sempre o nada que você é! Vá embora, desgraçado.

(As luzes se apagam. Abrem-se as cortinas e o praticável é removido do palco).



CENA 2

(Lentamente, as luzes vão se acendendo e iluminando a sala simples, modestamente decorada. Uma poltrona no centro da sala, uma mesa pequena ao lado da poltrona, do outro lado uma estátua representando dois soldados romanos, em tamanho natural (que podem ser dois atores performistas pintados de estátua). Ao fundo, no centro do palco, um arcaz de sacristia com muitas gavetas e dois grandes jarros de flores de cada lado do arcaz. A sala é o terraço do andar superior de uma casa judaica, comumente chamada de cenáculo. O cenáculo termina num parapeito caiado. Além do parapeito, a visão é muito clara e muito azul. Céu com poucas nuvens, árvores, colinas verdejantes e a silhueta dos telhados de Jerusalém, em primeiro plano de fundo.

Felipe, belo e jovem amanuense, íntimo de Paulo, está sentado na poltrona, com a imponência e placidez de um grande mar sem ondas, quando entram Paulo, esbaforido, e Tito carregando as sacolas com o dinheiro da coleta, que ele entrega a Paulo e este as exibe triunfante à Felipe. Em seguida, Paulo coloca as duas sacolas apressadamente nas gavetas do arcaz. Felipe levanta-se da poltrona e saúda Paulo afetuosamente, amorosamente. Incomodado, Tito sai da sala).


PAULO
– Espere Tito, não se vá!
(Tito para um instante e, enciumado, sai abruptamente da sala).


FELIPE
– Pelo visto, amado Paulo, a coleta em Corinto foi bastante generosa para com os fiéis de Jerusalém; quer dizer, a coleta em Corinto nos (dando ênfase irônica ao nos) foi bastante generosa!


PAULO
– Vejo, caríssimo Felipe, com muito orgulho, que os cristãos perseveram na doutrina dos apóstolos, seja nas reuniões comuns; na fração do pão; nas orações e principalmente no dízimo. Toda gente está com temor. Isso nos ajuda a realizar muitos prodígios, Temos feito maravilhas em nossas viagens e também aqui, é claro, em Jerusalém. Todos os que crêem estão unidos e tudo agora eles têm em comum. Vendem suas propriedades, vendem todos os seus bens e depositam o dinheiro aos nossos pés. E nós... bem, nós repartimos o dinheiro por todos, de acordo com a necessidade de cada um, ouviu Felipe? Suas necessidades estão um tanto quanto exageradas, seu perdulariozinho de uma figa! Mas, voltando aos cristãos, todos os dias eles frequentam o templo em perfeita harmonia e, partindo o pão pelas casas, tomam a comida com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e sendo bem visto por todo o povo. O senhor aumenta a cada dia o número dos que encontram em nós o caminho da salvação.


FELIPE
– Paulo, fique sabendo que não está sendo fácil eu me acostumar com esse seu novo discurso. Há pouco tempo, obstinado, você perseguia esse povo. Agora, o povo que você perseguiu passa a ser o seu povo fiel e você fala da fidelidade cega desse povo, com tanta veemência, com tanta sinceridade, veemência e sinceridade que me parecem tão verdadeiras!


PAULO
– Autênticas, verdadeiras. Sinceridade mesmo, meu amado Felipe. Não se deve perder o navio da história! Era o momento exato de mudar de lado. Agarrar com unhas e dentes esta oportunidade rara! A nossa velha religião ritualista, copiada dos egípcios estava peca, estéril, porque não temos um faraó. O nazareno propôs uma revolução religiosa, de imensas possibilidades. Jesus de Nazaré pregou uma doutrina de fraternidade, de amor ao próximo, que toca o mais profundo sentimento do povo oprimido e, ao mesmo tempo, protege, perdoa e até justifica os opressores. Não é um achado? Jesus pregou o desprezo pelas coisas terrenas e a resignação perante as adversidades. Pregou a misericórdia e a caridade como moeda de compra da felicidade. E, o mais importante, felicidade que não é para esta vida, pois esta vida é toda ela feita de dor e de sacrifícios. A felicidade prometida é para depois da morte, na vida eterna ao lado de Deus! Só estava faltando quem soubesse usar, construtivamente, com muito amor e coragem, esse enorme patrimônio religioso, financeiro e cultural.


FELIPE
– E você, embarcando no navio da história a sua coragem e o seu amor ao próximo, torna-se o seu comandante supremo, o ungido e abençoado sucessor de Jesus...


PAULO
–Não, Felipe! Sucessor, não! Jesus é único e eterno. E assim ele será adorado. Ninguém haverá de sucedê-lo. Sou apenas o fundador da igreja que ele não quis, apesar de ter lançado, sem saber, a semente dessa religião no meu jardim. Mas eu quero essa semente e farei valer o meu querer. A minha igreja e a fé em Cristo serão eternas, para a maior glória de Deus e para o nosso próprio bem!


FELIPE
– Se não fossem os açoites, as prisões, as emboscadas, todas essas perseguições que você tem sofrido...

(Paulo interrompe Felipe com um afago).

PAULO
–Ò meu belo e jovem companheiro; se não fossem os açoites, as prisões, as emboscadas, as perseguições que sofro e sofri, quem teria compaixão de mim? Todos os grandes profetas precisam de um calvário! Se não fosse por tudo isso, quem daria crédito às minhas palavras? Devo ao sofrimento de que padeço essa possibilidade de levar com sucesso o nome e a palavra do nazareno aos quatro cantos do mundo; nome e palavra que estão sendo acolhidos fervorosamente por todos os povos, tanto pelos judeus, quanto pelos gentios!


FELIPE
– Por tudo que ouvi e todas as suas cartas que você me ditou e eu registrei no pergaminho sagrado do Novo Testamento, posso até admitir que você, de fato, não é mesmo o sucessor do messias, porque você nega completamente tudo o que Jesus ensinou e prega justamente o contrário do que ele queria!


PAULO
– E nem poderia ser de outra forma, amado Felipe. O nazareno era um modesto filho de carpinteiro, sem ambição, sem a visão pragmática da vida. Quando falo em empunhar construtivamente a sua bandeira, eu estou dizendo que precisei reformar os seus ensinamentos; tive que adaptar a sua palavra aos imperativos da realidade! Era preciso construir uma moral e uma doutrina baseadas em alguns dos seus ensinamentos, é bem verdade, desde que devidamente fundamentadas na tradição e nas leis de nossos antepassados, reis generosos e sábios profetas, que não devemos, nem podemos desprezar, como Jesus queria. Jesus de Nazaré rasgou as escrituras sagradas: rompeu o véu do templo e disse que a lei de Abraão, de Moisés e todo o velho testamento nada representam aos olhos de Deus, porque a lei de Deus se resume a um só mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo”. É lindo, mas também é imprudência, é burrice ser tão radical assim!  Não podemos romper impunemente com as nossas tradições. Jesus é e será apenas um nome. Um santo nome, diga-se de passagem. E, em seu nome, nós seremos ao mesmo tempo tutores dos explorados e parceiros dos exploradores! Nosso grande aliado é o império que estiver dominando, império esse que lutará por nós, por nossa causa, enquanto nós cuidaremos dos oprimidos. Impediremos revoltas e conspirações dos explorados! Faremos o povo se orgulhar do seu sofrimento! Diremos a todos que Deus mais ama a quem mais padece! Por isso, quem mais sofreu neste mundo foi o seu próprio filho. E, depois dele, quem mais sofreu fui eu! Ofereceremos aos tiranos a governabilidade e eles, em troca, destruirão os nossos inimigos. Os tiranos se legitimarão destruindo os infiéis, isto é, destruindo qualquer um que se oponha a nós! Não pode existir sucesso maior! Já pensou se eu aceitasse que a igreja de Deus fosse o homem, como Jesus queria e não os templos que temos construído em toda parte? Já pensou se fossemos de casa em casa pregar a boa nova e mendigar a comida e a bebida para o nosso sustento? Abrir mão do dízimo? Não! Não! Mil vezes não! Em boa hora restaurei e valorizei a nossa tradição, o bom e velho testamento, que já deu certo no Egito. E só assim acumularei riquezas e terei poder. Claro que não sou o seguidor do messias. Sou o fundador de uma religião que pregará o seu nome e algumas de suas idéias, para maior glória de Deus! Sem dinheiro não há poder e sem poder não há futuro! Estou criando uma igreja rica e poderosa. Aliada dos reis e dos tiranos. Enquanto houver reis e tiranos, a minha igreja viverá como mãe e mestra dos oprimidos! Estou construindo a igreja universal, eterna, imbatível: a igreja universal do reino de Deus! E nós, os seus apóstolos, seremos, para todo o sempre, os guardiões desse tesouro! Jesus é o nome e não há salvação em nenhum outro nome, porque nenhum outro nome foi dado aos homens para salvá-los!

(Atraído pelas palavras de Paulo, Tito aparece no fundo do cenáculo)

FELIPE
–Tito entre, aproxime-se. Vamos brindar o começo de uma nova era! Rode, Traga o vinho!


(Tito aproxima-se. Fita Paulo intensamente e logo em seguida entra Rode,  jovem sensual, trazendo uma jarra de vinho, acompanhada de sua mãe, Madalena, com uma bandeja e 3 copos. Elas deixam a jarra de vinho e os copos sobre a mesa e se retiram da sala. Felipe serve o vinho, observando com acintoso prazer os passos de Rode, elegante e faceira como ela só. Paulo observa com indisfarçável indignação o olhar de Felipe para Rode e, antes que elas saiam da sala, esbraveja, enquanto as mulheres param num canto da sala para escutar):

                  
PAULO (irado). 
–Para que não se repitam os mesmos erros do passado, devemos policiar e controlar nossos impulsos bestiais! Você não pode ver um rabo de saia, Felipe! Nossa missão é árdua, mas a recompensa tem sido abundante! Mas, para que o fio da fortuna não se quebre, eu preciso ter perto de mim apenas homens de verdade! E homem de verdade é todo ser humano do sexo masculino que consegue ao mesmo tempo ter uma boa ereção e ser maior do que seus impulsos sexuais pelas mulheres. O homem de verdade consegue ser mais do que o seu instinto animal em direção às fêmeas no cio. Felipe, você deve fazer logo a sua escolha: ou você me acompanha, sem se promiscuir com as mulheres e desfruta comigo a nossa opulência, ou me deixe de uma vez e siga com quem você quiser o seu destino de dor, que é o destino de todo animal humano inferior!

                                                             
FELIPE
– Mas Paulo...  
(Paulo interrompe Felipe e diz:)


PAULO
– Mas nada, Felipe. Faça logo a sua escolha! Acharei ótimo se você escolher ser homem de verdade e viver ao meu lado. E se o fato de você precisar ficar longe das mulheres lhe causa tanto desgosto assim, que lhe sirvam de consolo as palavras do profeta Samuel, que agora as faço minhas:

“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres!”
  
(Tito deixa bruscamente o copo sobre a mesa e sai).


FELIPE
– Paulo, meu amado mestre, os meus olhos, essas livres e soberanas janelas da minha alma, apenas se encantam com as belas formas femininas, é verdade; mas o meu coração aprendiz deseja muito e só deseja os píncaros abençoados do Olimpo e não o lamaçal! A minha escolha há muito já está feita: vou acompanhá-lo com todo amor e lealdade, seguindo ao seu lado o nosso destino comum de opulência e esplendor! Vou acompanhá-lo como uma sombra acompanha o seu guia em direção à luz, para um dia, quem sabe, deixar de existir como sombra, para ser, eu mesmo, um simples e singelo raio de sol em meio à luz!


PAULO
– Ainda bem, Felipe! E, se assim for, vamos em frente! Esse instante me inspira a escrever algumas cartas. Anote aí, Felipe.

(Paulo começa a ditar uma carta para Felipe)

“De Paulo, chamado apóstolo de Jesus Cristo, por vontade de Deus, para Sóstenes, irmão, à igreja de Deus, que está em Corinto; aos santificados em Jesus Cristo, chamados santos, com todos os que invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, em qualquer lugar deles e nosso. Graças e paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso pai e pai do Senhor Jesus Cristo...”

(Paulo fica ditando sem que se ouça a sua voz e Felipe escreve o que Paulo dita, sob os olhares de Rode e Madalena, enquanto o coro, fora de cena, solfeja um tema gregoriano, ou uma polifonia de Palestrina. Pensativo, Paulo para de ditar; o coro silencia; Felipe olha para Paulo e diz: )
FELIPE
– Continue, senhor !  
(Paulo, fitando as duas mulheres, recomeça a ditar a carta):

PAULO (fitando as 2 mulheres no canto da sala)
-“A mulher deve usar o véu nas assembléias, ou se não quiser usá-lo, que então raspe a sua cabeça, pois em verdade, em verdade eu vos digo que a cabeça da mulher é o homem e a cabeça do homem é Jesus Cristo! E mantenham-se as mulheres caladas nas assembléias! Se tiverem alguma pergunta, que a faça em casa aos seus maridos.”  
(Paulo se cala. Assim que acaba de escrever, Felipe levanta os olhos para Paulo e diz):

FELIPE
– Continue, continue, senhor !  
(O coro reinicia pianíssimo o tema gregoriano,  compondo um fundo musical , agora não mais abafando, mas realçando o que está sedo ditado por Paulo).

PAULO
“Ora, quanto à coleta que se faz para os santos, fazei vós também o mesmo que ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte o que puder juntar, conforme a sua prosperidade, para que não se façam as coletas quando eu chegar. E quando eu tiver chegado, mandarei atraves de companheiros que me são fiéis a vossa dádiva para Jerusalém. E, se valer a pena que eu também vá, irei com eles.”

FELIPE
– Bravo mestre ! continue ...

PAULO
“Aos romanos, porque pareceu bem à Macedônia e à Acácia fazerem uma coleta para os pobres dentre os santos que estão em Jerusalém ...”
(Felipe interrompe Paulo, dizendo irônico):
 FELIPE
– Bem aventurado sou eu, pobre e santo de Jarusalém! Continue meu amado mestre!

PAULO (sorrindo)
“Aos Gálatas, recomendo que não se esqueçam dos pobres; sempre procuro fazer com diligência a divisão entre eles de tudo que for ofertado por vós !”
(Enquanto Felipe dá gargalhadas histéricas, a música entoada pelo coro  chega à apoteose, ao climax, ao gozo supremo. Fecham-se cortinas, no meio do palco para ocultar o cenáculo, e todas as luzes se apagam de vez.)


CENA 3
  
(Após um breve intervalo no escuro, as luzes vão se acendendo aos poucos. O coro que volta à cena, ocupa a frente do palco, representando transeuntes atentos ao que se passa na praça principal.)


CORO -                                  “Os apóstolos com grande coragem
davam testemunhos da ressurreição do Senhor Jesus
e era grande em todos a graça
e nenhum necessitado
havia entre eles
porque todos aqueles
que possuíam campos ou casas
vendendo-os
traziam o preço do que vendiam
aos pés dos apóstolos
e os apóstolos distribuíam
por cada um
segundo a sua necessidade
e o pouco de muitos
se tornava o suficiente para todos.
                                                  Amém.”                                                         

(Entram em cena PAULO e FELIPE, em frente ao coro, que continua a se movimentar graciosamente, como transeuntes.)
 

FELIPE

Meu amado Paulo, fico confuso quando você me fala em mudar de lado, para seguir Jesus e no mesmo instante oferece seus serviços ao sumo sacerdote, para perseguir, prender e trazer para Jerusalém todos os seguidores de Cristo que você encontrar em Damasco.

PAULO

Não se inquiete amado irmão Felipe, pois quando às portas de Damasco eu chegar, uma luz fulgurante vinda do céu você verá.
E eu ao vê-la, por terra, cego, eu me prostrarei. Então você piedosamente ouvirá e testemunhará uma voz, vinda dos céus, voz essa que dirá:

        
CORO -
“Paulo, Paulo,
por que me persegues ?”


PAULO          
Dirigindo para os céus os meus olhos opacos, sem luz e quase sem vida, perguntarei :  Quem es tu, senhor ? E a voz, lá das alturas, responderá:


 CORO -                                           

“Eu sou Jesus a quem tu  persegues.
  Levanta-te; entra na cidade,

  E lá lhe será dito o que deves fazer.”



PAULO -                                                          

Tu e mais Felipe, Timóteo e Silas vão me acompanhar e testemunhar. Eu, completamente cego, serei por vós levado à Damasco, onde ficarei três dias, sem comer e sem beber.


 FELIPE E O CORO -                                

 E quem acreditará em nós ?

          
PAULO -                                                                                   
Está tudo combinado com Barnabé e Ananias. Ananias virá pela estrada de Damasco ao meu encontro com escamas de peixe ocultas sob a manga da camisa e porá suas mãos sobre os meus olhos. Nesse instante recobrarei a visão. As escamas escondidas cairão dos meus olhos, e a voz de Deus dirá a Ananias essas palavras sagradas:
                                

CORO -
Escolhi este homem para ser meu instrumento para levar o meu nome aos povos que criei. Para levar o meu nome aos povos que criei.”    

 (Todas as luzes se apagam bruscamente)


CENA 4

(Abrem-se as cortinas e as luzes se acendem lentamente. Nuvens azuladas cobrem todo o palco vazio e vão se dissipando aos poucos. Quando volta a claridade, Paulo está cego, prostrado no meio do palco. Entra Ananias.)


ANANIAS -    

(de joelhos, olhando para o céu)     
                                          
Senhor, meu Deus. Tenho ouvido dizer a                                                                                                           muitos quantos males aos teus santos                                                                          este homem fez. E sei que ele vem com poderes                                                                           do príncipe dos sacerdotes para prender a todos que invocam o Teu nome!

CORO -                                                   
“Vai, cumpre o teu papel, Ananias. Porque este homem é o instrumento que escolhi dentre todos para levar meu nome diante dos reis, diante dos filhos de Israel e diante de todo povo que criei. E eu lhe mostrarei o quanto se deve sofrer pelo meu nome!”

(Ananias aproxima-se de Paulo e impõe-lhe as mãos sobre os olhos).

 ANANIAS -                                        
Paulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho de Damasco,                                                                             enviou-me para que recuperes a visão                                                                              e fiques cheio do Espírito Santo!

(Imediatamente, coisas como escamas de peixe - que precisam ser visíveis até para quem está na ultima fila da plateia - se desprendem das mãos de Ananias, postas sobre os olhos de Paulo, e ele recupera a visão. Paulo, sorridente, encantado, deslumbrado, se deixa levar para o fundo do palco, onde recebe novas vestes, é alimentado e batizado, enquanto o coro, apoteótico, entoa um hino de louvor.)

CORO -                                                               
Hosana, Hosana, Hosana!
Bendito este que vem em nome do Senhor!
Hosana, Hosana, Hosana!
Hosana nas alturas!
Aleluia, Aleluia, Aleluia!
Bendito o que vem em nome do Senhor!
Hosana nas alturas!



FIM DO 1º ATO





2º ATO

CENA 1


CenárioA mesma sala da Cena 2 do 1º Ato, só que decorada com mais esmero: maior número de acentos, almofadas e cortinas orientais, incenso, a estátua dos dois soldados gregos, o arcaz ao fundo, mais plantas embelezando o ambiente, que ficou bem aconchegante.


 

(Felipe dirigindo-se a Madalena, mãe de Rode.)



FELIPE
– Enquanto Paulo pregava Jesus e a ressurreição de Jesus, para o povo de Atenas, os epicureus, em estado de gozo permanente, por causa de sua doutrina do prazer, imaginavam que Ressurreição fosse uma divindade feminina, companheira e amante de Jesus! Pois bem, para mim, Madalena, os gregos estão com a razão! A mulher é a ressurreição; a ressurreição feita de carne e osso. Em suas entranhas o átomo é um corpo morto, inerte, que transforma-se em ser e, vencendo os desígnios da morte, esse novo ser, pleno de vida, do corpo da mulher é dado à luz!

(Entra Rode, interessada no assunto, e Felipe se dirige a ela com volúpia.)


FELIPE
– Rode, façamos uma oblação: à imensa fortuna que nos abraça e também à ressurreição, que nos espera – agora e na hora de nossa morte - no corpo de uma mulher, visto que a morte também é mulher. E a morte é a derradeira e a única mulher inevitável de nossa vida. Traga o vinho, formosa donzela! Quero morrer de prazer e ressuscitar em seus braços, até a derradeira vez.


(Sai Rode toda alegre e faceira.)


MADALENA
– Felipe, parece que você esqueceu que seus olhos, essas livres e soberanas janelas de sua alma, não são, nem tão livres, nem tão soberanas assim, ao ponto de se permitirem maravilhar e desejar as formas femininas da ressurreição! Você não está lembrado que tanto o seu coração quanto o de Paulo só devem desejar o Olimpo, que, segundo ele, é um lugar bem afastado das abomináveis mulheres?


FELIPE
– Madalena, minha querida, Paulo e eu já alcançamos o nosso destino de riqueza e de glória! Agora só nos resta desfrutá-lo. Além disso, aprendi com o meu querido mestre a importância de se saber usar a verdade aparente em nosso proveito, para que possamos brilhar ainda mais em nosso esplendor!


MADALENA
– Verdade aparente? O que é verdade aparente???

(Volta Rode, mais bela, mais solta, sem as tranças, mais decotada e mais enfeitada, trazendo o vinho e os copos numa bandeja.)


FELIPE
– Isso mesmo que você ouviu. Verdade aparente sim, Madalena! Aparente e visível como o azul do mar à luz do dia! Podemos dizer que a verdade aparente é a face masculina da verdade, ou a verdade que se impõe ao mundo exterior pela força masculina do universo. O mundo que se vê, que se toca, que se domina e que se conquista pelo poder da força masculina, é a verdade aparente.

(Rode fica em pé, atenta, após deixar a bandeja sobre a mesa, acompanhando com muito interesse o diálogo de Felipe e Madalena.)


MADALENA
– Então você está querendo dizer que há de haver também uma outra verdade, uma verdade escondida, invisível, como o azul de um céu envolto em nuvens! Com isso você afirma que existe também uma face feminina da verdade, perdida no silêncio do universo, além dos nossos sentidos. Verdade aprisionada num universo interior, realidade que não se vê, não se toca, nem se conquista pela força. Uma verdade escondida, como uma canção coberta de silêncio!


FELIPE
– Não estou querendo dizer, Madalena: eu estou afirmando que a verdade existe aos pares, como tudo na vida. Pares que se complementam, para que um deles possa prevalecer! Na vida é assim: um existe para que o outro apareça! É assim com o dia e a noite; com a luz e as trevas; com o homem e a mulher! Como você já pode perceber, a verdade aparente, a verdade que se vê, a verdade que prevalece, é sempre a face mais forte, mais agressiva da verdade...


MADALENA
- ... a verdade dos homens, a verdade dos músculos! E a outra face, a face mais fraca, invisível, silenciosa, feminina, é a verdade da mulher!


FELIPE
– Perfeito, Madalena! E então, diga-me pois Madalena: qual o mais puro exemplo da verdade masculina que você conhece?


MADALENA
– É o golpe, Felipe; é qualquer golpe certeiro e mortal!


FELIPE
– Quase isso, Madalena. Esse golpe certeiro e mortal chama-se Direito! O Direito é o mais puro exemplo da verdade masculina da vida! O Direito foi, é, e sempre será a vontade dos mais fortes. A justiça, por sua vez, será sempre a face feminina! O que importa realmente é que o direito seja cumprido. Justo será todo aquele que cumpre as leis. Justo é o juiz que aplica com rigor a vontade dos mais fortes! Sábio é, pois, quem sabe usar a verdade aparente, quem constrói e aplica o direito, em seu proveito! E a justiça ficará sempre escondida no enigma das paixões e no coração dos poetas!


MADALENA
– Então, se assim for, o mundo está condenado ao direito! O homem será eternamente submisso à vontade dos tiranos; os mais fracos serão sempre condenados à opressão. E a face esquecida da verdade - a Justiça – será um sonho impossível dos oprimidos, guardado na alma feminina, ou pulsando no coração dos poetas!


FELIPE
– É claro! Você não sente, Madalena, que a verdade possui de fato essa mesma polaridade do Direito e Justiça? Essa mesma dinâmica social? Veja: Paulo trouxe os atenienses para a sua igreja, mostrando e provando que o seu Deus é o deus desconhecido deles: o Deus Desconhecido, senhor do céu e da terra, que não habita em templos, nem é servido pelas mãos dos homens. Mas hoje construímos templos em toda parte e o Deus Desconhecido agora já habita os nossos templos e é para lá que os hebreus, os gentios, os gregos, é para lá que todos devem ir depositar as suas oferendas; pedir perdão pelos pecados e suplicar a salvação eterna! Madalena, a vida só tem sentido e o homem só tem sucesso nos domínios da verdade aparente! E o sucesso consiste em se usar com maestria essa verdade em nosso proveito!

(Rode aproxima-se manhosamente de Felipe e coloca-se estrategicamente ao seu alcance. Felipe abraça Rode pela cintura com sofreguidão. Os seios de Rode saltam do decote e ela, como uma serpente altiva e pegajosa, desvencilha-se carinhosamente de Felipe, veste seus seios num movimento suave, pleno de carinho, e pergunta com vivacidade:)


RODE
– Vamos ou não vamos fazer a oblação para celebrar a ressurreição, aqui modestamente representada pela minha humilde pessoa e pela abençoada pessoa de minha mãe?


FELIPE
– Vamos brindar a ressurreição representada pela sua pessoa, Rode! Sua mãe já não mais possui em suas entranhas a graça de poder conceber uma nova vida. Deus afastou esse dom das mulheres velhas; essa é uma verdade masculina, um direito que a vida ofereceu aos homens! Sirva o vinho e brindemos a ressurreição de Cristo, minha bela companheira e brindemos a você, Rode, que será para sempre a minha ressurreição!


RODE
– Serei a sua ressurreição até eu ficar velha! E essa é a verdade feminina!


MADALENA
– Você acha pouco todo esse fel jorrando de suas palavras, Felipe? E logo você, que deve dar aos fiéis o bom exemplo, por ser o guardião da verdade masculina; você desobedece a tradição de nosso povo, tradição que um dia você jurou respeitar; tradição que o obriga à abstenção do vinho, até que você ofereça o seu sacrifício em Jerusalém! É a lei, Felipe!


FELIPE
– Madalena, o meu sacrifício, ou melhor, o dízimo que representa o meu sacrifício, em nome de Deus, agora é para a igreja de Paulo e eu sou um pouco da igreja de Paulo. Sirva o vinho, Rode. Madalena beba conosco o sucesso da igreja de Paulo! Jerusalém acabou! Viva a nova lei!

(Madalena faz um gesto de desolação.)


FELIPE

(aproximando-se de Madalena com um afetado ar de compaixão).

- Ó minha querida Madalena. Não fique assim! Eu sei o quanto você amou Jesus. Por isso alegre-se, porque é em nome de Jesus que vivemos agora! Se depender do nosso esforço e até de nosso sacrifício, o santo nome de Jesus jamais será esquecido! Pense no quanto Paulo sofre em prisões, açoites, perseguições; tudo isso em nome de Jesus! Lembre-se do martírio de Estevão. Os mártires sofrem por si e por nós. E nós não precisamos sofrer mais! Eles já sofreram o bastante por nós. Nós já conquistamos a confiança dos tiranos, dos vencedores e agora somos seus aliados naturais! Sempre haverá impérios e colônias. As armas do império nos defenderão dos ataques dos infiéis. Por isso a igreja de Paulo é romana. Se um dia o império romano for devastado por outro império qualquer, a nossa igreja será aliada do império vencedor. Hoje a igreja de Paulo, a nossa igreja, é apostólica, romana, como poderá naturalmente ser germânica, babilônica, árabe, africana, até o dia em que o nome e a palavra de Jesus estiverem plantados em todos os corações. Nesse dia, a nossa verdade e o nosso direito por si só garantirão o dízimo da nossa fartura e a continuidade do nosso prazer! Brindemos, Madalena! A história é a vontade, é o direito e é a verdade dos vencedores. O sofrimento é o consolo dos que tem fé. E, nessa fé pungente, todos os sofredores e todos os injustiçados esperam um dia o a vitória da justiça, a vitória da verdade escondida, triunfo que nunca virá, pelo menos nesta vida!

MADALENA
– Pois eu abraço com amor a minha fé! Nem você, nem Paulo conheceram Jesus. Ninguém viveu com ele o que eu vivi! Eu o acompanhei, passo a passo, o resto de sua vida, aqui na Palestina. Aprendi com ele a acreditar na verdade que você diz escondida. Jesus me ensinou que quando você diz “sim”, a verdade foge e também foge quando você diz “não”. A verdade está mesmo escondida em algum lugar entre o “sim” e o “não”. E, acredite nesse milagre: eu vivi com Jesus apenas a verdade escondida. Vi quando José de Arimatéia lhe deu o vinho do sono profundo, lá no alto do madeiro. Ajudei a retirá-lo da cruz e acompanhei o seu sepultamento. Levei bebida para os guardas do sepulcro, bebida que misturei à poção do sono profundo. Quando os soldados adormeceram, ajudei a tirá-lo da sepultura e foram os meus os olhos que ele viu primeiro em seu olhar, assim que acordou! E chorei quando ele partiu na direção da estrela do oriente. A verdade oculta ficou com Jesus! Por tudo isso, eu abraço a minha fé na verdade escondida, um abraço sem sofrimento, porque a minha felicidade, felicidade intensa que compartilhei com Jesus, vem de mim mesma e não do deus dinheiro. A minha alegria vem de mim e não de César! Vocês sepultaram em suas igrejas as palavras de Jesus e forjaram a ressurreição do antigo testamento, só para arrancar do povo miserável o dízimo, que engorda o seu tesouro, e compra para o seu corpo o prazer fugaz. Eu vivo, velha e feliz, o verdadeiro amor que vivi com Jesus, amor que sempre será oculto para vocês!

FELIPE
– Arrancamos com prazer o dízimo do povo miserável e de quem mais precisar de uma palavra de consolo, de uma palavra de esperança. Arrancamos e arrancaremos o dízimo de todos que precisarem da remissão dos pecados; da ressurreição da carne e da vida eterna, amém!


RODE
– Amém! Amém! Amém!


FELIPE
– Se Paulo não tivesse rasgado as palavras de Jesus e seguisse ao pé da letra as suas instruções, a boa nova do Nazareno seria esquecida em duas gerações! O plano de Paulo fará eterna a sua igreja, que pregará o nome de Jesus e só assim o santo nome dele será lembrado para sempre!

(Rode se aproxima languidamente de Felipe com duas taças de vinho e há uma cena de ternura entre os dois).


MADALENA
– Felipe, você não consegue ver até onde vai o seu desatino! Já pensou se Paulo entra aqui, nesse momento? Ele corta a sua mesada e você dá adeus ao seu prazer; adeus à verdade dos ricos; adeus à sua boa vida!


FELIPE
– Para o seu governo, Madalena, Paulo e eu já superamos amorosamente essa etapa, digamos pegajosa, de nossas vidas! Eu estou definitivamente livre para amar quem eu queira; livre e com renda suficiente para desposar Rode e viver com ela a vida que pedi a Deus. Paulo está livre também. Agora ele tem Tito e Timóteo para lhe fazer companhia!


MADALENA
– Timóteo?


FELIPE
– Sim, Timóteo de Listra. Segundo ouço dizer, hoje ele é o mais fiel e amado de seus companheiros. Paulo o trata com todo carinho!

(Nesse momento, as luzes ficam bem fracas, desce uma cortina e esconde o cenário. Em primeiro plano, Felipe, Madalena e Rode continuam conversando. Num plano de fundo Paulo e Timóteo entram em cena por trás da cortina, em silhuetas projetadas nessa cortina ao fundo, num encontro muito afetuoso deles dois. A partir desse encontro, Paulo e Timóteo passam a representar o que Felipe fala sobre eles.)


FELIPE
– Para você saber o quão próximo Timóteo é de Paulo, basta que lhe diga que mesmo depois de tanto combater o uso da circuncisão e de expurga-la da nova lei, Paulo, num gesto do mais puro amor, quis ele mesmo, com suas próprias mãos, circuncidar a Timóteo, para dar publicamente o bom exemplo de fidelidade à tradição estabelecida por Deus, como sinal de sua aliança com Abraão!

(Há uma belíssima coreografia da circuncisão feita por Paulo em Timóteo, projetada em silhuetas sobre o pano de fundo. Uma linda cena de amor e paixão! Fora de cena, o coro solfeja a ária nº4 de Bach. No canto do palco, em primeiro plano, num foco tênue e restrito de luz, Felipe, Madalena e Rode conversam indiferentes à cena. Finda a dança da circuncisão, as silhuetas de Timóteo e Paulo retiram-se do palco, ergue-se a cortina, e Felipe retoma a narrativa.)


FELIPE
– Depois de ser circuncidado, Timóteo foi ordenado por Paulo pela imposição das mãos, em cerimônias públicas, testemunhadas por muitos fiéis. Juntos foram para a Macedônia e continuam sempre juntos, viajando por muitos lugares. Uma união feliz.


RODE
– O amor é lindo!


MADALENA
– Mas como é possível existir esse amor, se o amor entre iguais é um amor proibido pela verdade dos homens? O próprio Paulo condenou à prisão perpétua, à clandestinidade, ao confinamento entre quatro paredes, o amor entre pessoas do mesmo sexo! Eu me lembro muito bem o dia em que Paulo, morrendo de ciúmes de um caso de Felipe com um jovem mancebo da Macedônia, ditou, a esse mesmo Felipe, incansável conquistador de pessoas, uma carta execrando e proibindo esse amor, que você acha tão lindo, Rode. Você está lembrado, Felipe?


FELIPE
- Aquele dia e aquela carta jamais serão esquecidos!

(Felipe toma em suas mãos um volume magnificamente encadernado, que estava sobre o arcaz, folheia-o, encontra a carta e lê um Trecho em voz alta e solene.)

Eis a carta! “E semelhantemente também os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro”.


RODE
– Meu Deus do céu!


FELIPE
– O ódio contido nessa carta dirigida aos romanos vai mais além.

(Felipe retoma a leitura.)

Estando cheios de toda iniquidade, prostituição, malícia, avareza, maldade, cheios de inveja, homicídios, engano, malignidade”.


RODE
– Que horror!


FELIPE
“Sendo murmuradores, detratores, aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais e às mães. Néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia. Os quais, conhecendo a justiça de Deus, são todos eles dignos de morte, não somente os que fazem, mas também aqueles que consentem que essas aberrações sejam praticadas”.


MADALENA
– Nesse caso, Felipe, nessa carta aos romanos, vejo que as palavras de Paulo são a verdade aparente, usada em seu próprio proveito, apenas para coibir situações capazes de fazer explodir o seu ciúme e para esconder de todos o amor carnal, o amor total de Paulo por você, por Tito, por Timóteo e por todos os seus jovens companheiros de viagens. Ah doce ironia do destino! O amor verdadeiro, real, o amor que Paulo tem pelos seus varões é a verdade sublime, oculta, feminina, proibida e condenada pela verdade aparente!


FELIPE
– Deixe isso para lá, Madalena. O que interessa é que, cada vez mais, o amor de Paulo se materializa em dádivas aos seus mais fiéis companheiros! A Ananias coube a igreja de Éfeso, o que não deixa de ser um bom legado em vida. Eu também não posso me queixar, nem Tito, que recebeu como prêmio a igreja de Creta!

(Nesse instante, enquanto as luzes perdem intensidade, rapidamente o pano de fundo do palco é substituído por outro que representa o interior de uma catedral. Felipe, Rode e Madalena passam para um canto à frente do palco e entram em cena Tito, Ananias, Paulo e o coro, para encenar a sagração de Tito e Ananias como bispos de suas igrejas. Após a belíssima cerimônia de sagração, todos se retiram do palco, exceto Felipe, Rode e Madalena e as luzes voltam com toda intensidade sobre eles.)


MADALENA
– Mesmo tendo Paulo vivido todo esse amor tão intenso e variado, nada, nada disso vale o martírio que ele sofreu e continua sofrendo!


RODE
– Sofreu martírio? Pois fique sabendo, minha mãe, que essas prisões e castigos habitualmente oferecidas a Paulo, ele os recebe como prêmio e não como punição. Eles são frutos de acordo entre cidadãos romanos! Pura farsa, para iludir o povo, entre o poder de César e o poder de Deus, que está nas mãos de Paulo! Ultimamente Paulo tem se deliciado com uma prisão domiciliar em Roma, que consiste em ficar as 24 horas do dia com os seus braços acorrentados aos braços de um soldado romano! É tudo o que ele pediu a Deus! (Rode diz isso acariciando a estátua dos soldados que enfeita o cenáculo).


FELIPE
– Paulo, sempre justo e magnânimo, é e será sempre um exemplo a ser seguido pelos vencedores, Rode.


RODE
– Paulo é e será sempre o melhor exemplo da verdade masculina!


(Nesse momento volta o coro abruptamente ao palco e um de seus componentes anuncia:)


MENSAGEIRO
– Felipe, um mensageiro vindo de Roma traz a notícia de que Paulo morreu decapitado, por ordem de César! O maior desejo de sua vida foi alcançado! Paulo deu o testemunho de Jesus Cristo com o seu próprio sangue! Aleluia!

(Cai repentinamente do alto uma cortina sobre o meio do palco, na qual é projetada em silhueta a cena final da dupla decapitação de Paulo e Pedro. O coro, fora de cena, solfeja uma música dramática, apoteótica! Imediatamente após encenada a decapitação, Felipe chega, só, à frente do palco e, num misto de revolta e desespero, diz:)


FELIPE

 – O destino é mudo / navega os sonhos / e em silêncio constrói as possibilidades. A nossa escolha é cega!

(Todo o elenco, fora de cena, canta um hino épico, altissonante, enquanto as luzes vão morrendo sobre a solitária figura imóvel de Felipe, na frente do palco.)


FIM